MARIGHELLA,
Carlos
*mov. comunista; const. 1946; dep. fed. BA 1946-1948.
Carlos Marighella nasceu
em Salvador no dia 5 de dezembro de 1911, filho de Augusto Marighella, mecânico
nascido na Itália, e de Maria Rita Marighella, descendente de escravos
africanos.
Desde cedo, Carlos Marighella foi influenciado pelas idéias
socialistas de seu pai. Depois de concluir os estudos básicos no Ginásio da
Bahia, matriculou-se, em 1929, no curso de engenharia civil da Escola
Politécnica, também em Salvador. No início da década de 1930, ainda estudante,
ingressou no Partido Comunista Brasileiro, então Partido Comunista do Brasil
(PCB). Devido à militância, foi preso pela primeira vez em 1932, tendo que
abandonar os estudos. Ainda assim, depois de solto, continuou a atuar junto ao
movimento estudantil baiano.
Neste período, tornou-se um dos principais articuladores do
partido no estado até ser convocado pela direção nacional em 1936 para atuar no
Rio de Janeiro, então Distrito Federal, e também em São Paulo. O país vivia
nessa época sob estado de sítio, logo transformado em estado de guerra — e
conhecia uma das maiores ondas de repressão de sua história. O PCB, duramente
perseguido, passava por séria crise interna, enfraquecido pela derrota do
movimento de novembro de 1935, a Intentona Comunista. Antônio Maciel Bonfim (o
Miranda, também conhecido como Adalberto Andrade Fernandes), então
secretário-geral do PCB, e Luís Carlos Prestes estavam presos, e o cerco policial
ao partido se intensificava. Em maio de 1936, Marighella foi novamente
capturado. Torturado, negou-se a ceder qualquer informação à polícia política.
No período em que Marighella esteve preso, as divisões
internas no PCB se agravaram em virtude da polêmica sobre a posição que o
partido deveria adotar diante das eleições presidenciais previstas para 1938,
que seriam disputadas por Armando de Sales Oliveira, ex-governador de São
Paulo, e José Américo de Almeida, candidato oficiosamente apoiado pelo governo
de Getúlio Vargas. Em meados de 1937, a corrente que preconizava o apoio a José
Américo, liderada por Lauro Reginaldo da Rocha (o Bangu) e apoiada pela
Internacional Comunista (Komintern), prevaleceu, levando um grupo de militantes
paulistas a deixar o partido e aderir ao trotsquismo. As eleições, entretanto,
não chegaram a se realizar em virtude do golpe de Estado que, liderado pelo
próprio presidente Vargas, implantou o Estado Novo em 10 de novembro de 1937.
Marighella saiu da cadeia no ano seguinte e foi reorganizar o
PCB em São Paulo, onde a cisão trotsquista causara maior impacto entre os
comunistas, tornando-se o principal dirigente do partido no estado. Em maio de
1939, porém, foi novamente preso, junto com a maior parte dos integrantes do
comitê regional paulista, permanecendo, dessa vez, quase seis anos nos
presídios de Fernando de Noronha e Ilha Grande (RJ).
Nos primeiros anos da década de 1940, o PCB ficou reduzido a
uns poucos milhares de militantes dispersos pelo país com fraquíssima atividade
orgânica, devido ao baixo número de comitês regionais em funcionamento e à
ausência de uma direção nacional, pois a última fora encarcerada em 1940. Com a
mediação de Diógenes de Arruda Câmara, que atuava em São Paulo, os dois núcleos
mais estruturados do partido — o da Bahia e o do Rio de Janeiro — se
articularam em torno da Comissão Nacional de Organização Provisória (CNOP),
criada com o apoio de Prestes, que continuava preso. Como fruto deste trabalho,
realizaram clandestinamente, no final de agosto de 1943, em uma cidade do vale
do Paraíba, a II Conferência Nacional do PCB.
A Conferência da Mantiqueira, como ficou conhecida, aprovou
uma linha política que preconizava a “união nacional em torno do governo” e o
apoio irrestrito à sua política de guerra contra o nazi-fascismo, e elegeu um
comitê central. Prestes tornou-se secretário-geral (temporariamente substituído
pelo operário José Medina e, depois, pelo ex-deputado classista de 1934 Álvaro
Ventura), e Marighella estava entre os que, presos, foram eleitos para a
direção nacional do PCB.
Atuação parlamentar e nova clandestinidade
No ano de 1945 ocorreram importantes modificações na vida
política nacional, como a anistia aos presos políticos, a legalização do PCB, a
deposição de Getúlio Vargas, em 29 de outubro de 1945, e a realização de
eleições para a Assembléia Nacional Constituinte (ANC). Ainda em abril,
anistiado por Vargas, Marighella foi eleito deputado à ANC pelo estado da Bahia
em dezembro do mesmo ano, tornando-se um dos 14 membros da bancada comunista na
Assembléia. Foi segundo suplente de secretário da mesa diretora dos trabalhos,
iniciados em fevereiro de 1946.
A Assembléia promulgou a nova Constituição em 16 de setembro
deste mesmo ano, convertendo-se em Congresso ordinário. Marighella passou a
secretário da bancada comunista na Câmara Federal no início da primeira
legislatura ordinária posterior ao Estado Novo, iniciada em 27 de dezembro de
1946. Nesse período, o PTB experimentou notável crescimento, tornando-se em
pouco tempo um partido nacional.
Em
7 de maio de 1947, alegando a existência de duplicidade estatutária e de
vínculos internacionais com a União Soviética, o Tribunal Superior Eleitoral
(TSE) cancelou o registro do PCB, colocando-o novamente na ilegalidade, mas os
parlamentares comunistas continuaram a exercer seus mandatos até que fossem
cassados pelas mesas da Câmara e do Senado, em 10 de janeiro do ano seguinte.
Ainda em julho de 1947, chegou à Câmara o projeto de Lei de Segurança Nacional
elaborado pelo governo do presidente Eurico Gaspar Dutra. Em discurso
pronunciado da tribuna da Câmara, Marighella repudiou o projeto e fez duras
críticas ao chefe da Casa Militar da Presidência da República, general Álcio
Souto. Em defesa deste, o ministro da Guerra, general Canrobert Pereira da Costa,
mandou, através do líder do governo, Carlos Cirilo Júnior, uma carta pedindo
satisfações à Câmara em face do pronunciamento de Marighella. Depois de
entendimentos entre parlamentares de diversos partidos, coube ao líder da
bancada comunista, Maurício Grabois, encerrar o episódio.
Durante o exercício do seu mandato, Marighella pronunciou 195
discursos e foi o autor de boa parte das 330 emendas apresentadas pelos
comunistas ao projeto que resultou na cassação de seus mandatos, numa tentativa
de protelar sua aprovação. No Congresso, seu nome ficou ligado também ao debate
em torno da questão do petróleo, à qual continuou vinculado nos anos seguintes.
Ainda
em 1947, foi o primeiro diretor da revista Problemas, órgão teórico do comitê
central do PCB, sendo substituído por Diógenes Arruda em novembro de 1948.
Atuando novamente na clandestinidade, Marighel- la instalou-se em São Paulo,
tornando-se, até 1952, o dirigente máximo do partido na capital paulista. Nesse
ano, foi designado para dirigir o comitê regional de Piratininga, que incluía
São Paulo e várias cidades de sua periferia, além de substituir temporariamente
João Amazonas na direção do trabalho sindical do partido. Pouco depois,
apresentou ao comitê central um informe elaborado com a participação de líderes
sindicais comunistas, em que se procurava fugir ao radicalismo do manifesto de
agosto de 1950 que, assinado por Luís Carlos Prestes em nome da direção
nacional do PCB, cristalizava a reação dos comunistas à perda da legalidade
propondo, entre outras medidas, a transformação das forças armadas em “exército
popular de libertação nacional” e o “armamento geral do povo”.
Ainda
este ano, considerando que as eleições presidenciais que acabaram por
reconduzir Getúlio Vargas ao poder era “uma farsa”, o PCB conclamou o povo a
votar em branco. Os comunistas que atuavam junto a Marighella no movimento
sindical foram os primeiros a afirmar que a aplicação da linha traçada pelo
Manifesto de agosto, no que lhes concernia, não era viável, pois implicaria o
abandono do trabalho nos sindicatos. A atuação de Marighella no Comitê Regional
de Piratininga esteve ligada à preparação da grande greve de março/abril de
1953, dirigida pelo líder sindical comunista Antônio Chamorro. Apesar da
paralisação de cerca de trezentos mil operários em todo o estado, os aumentos
salariais reivindicados só foram parcialmente alcançados.
No IV Congresso do PCB, realizado em novembro de 1954,
Marighella apresentou um informe sobre a participação do partido nas eleições
parlamentares desse ano e foi reeleito para o comitê central, sem atingir ainda
a comissão executiva (que, na época, se chamava Presidium) ou o secretariado
nacional do partido. O congresso se realizou em uma conjuntura ainda marcada
pelo suicídio de Getúlio Vargas, ocorrido em agosto deste ano, quando o
presidente, alvo de cerrados ataques oriundos das forças políticas de esquerda
e de direita, estava virtualmente deposto pelos setores mais conservadores da
política nacional. O informe apresentado por Marighella já traduzia a inflexão
havida na política dos comunistas em relação à participação eleitoral,
afirmando que “o sectarismo foi o pior entrave na campanha eleitoral” de 1954.
Suas conclusões, entretanto, se mantinham nos limites da linha definida em
1950, ressaltando a necessidade de formar a “frente democrática de libertação
nacional”, e realizar “ações revolucionárias de massas pela conquista do
governo democrático de libertação nacional”.
Após
o IV Congresso, Marighella tornou-se secretário político do comitê municipal do
Distrito Federal — o comitê metropolitano —, para onde se transferiu,
permanecendo em contato com os órgãos dirigentes do partido, também sediados no
Rio. Nessa época, o PCB apoiou a candidatura de Juscelino Kubitschek à
presidência da República, que acabou por sair vitoriosa no pleito de 3 de
outubro de 1955.
A crise de desestalinização
A denúncia dos crimes e erros de Josef Stalin por Nikita
Kruschev no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), em
fevereiro de 1956, detonou uma crise que atingiu todo o movimento comunista
pelo mundo. No PCB, ela foi alimentada também pelo descontentamento de muitos
militantes com o núcleo dirigente que comandava o partido — Diógenes Arruda,
João Amazonas, Maurício Grabois e Pedro Pomar. O partido não chegou a tomar
conhecimento oficial do “relatório secreto” apresentado por Kruschev e
publicado no jornal O Estado de S. Paulo. Em vista disso, passados seis meses,
a direção não se decidira a discuti-lo, apesar da existência de uma corrente
favorável à abertura de um amplo debate interno sobre o assunto, chamada de
“abridista”, liderada por Agildo Barata, tesoureiro do comitê central.
Em agosto de 1956, Diógenes Arruda retornou da União
Soviética e confirmou a autenticidade do relatório contra Stalin, mas a
ausência de um acordo dentro da comissão executiva impediu, mais uma vez, que o
problema fosse levado ao conjunto do partido. O comitê central se reuniu
imediatamente, sob forte tensão, em virtude da inevitabilidade de um balanço
crítico da atuação dos dirigentes. Arruda recebeu pesadas críticas, mas
Marighel- la, que ficara fortemente impressionado com as revelações de
Kruschev, também foi alvo de duros ataques. Segundo o dirigente comunista
Teodoro Melo, um dos presentes, foi lembrado que Marighella propusera, no
início da década, que o PCB provocasse a explosão de um trem para interromper o
tráfego e desencadear, assim, uma greve de ferroviários, sendo demovido dessa
idéia por seus companheiros. Essa acusação, que ele não contestou, e a
dramaticidade da situação fizeram com que Marighella não conseguisse chegar ao
fim de sua intervenção por causa de uma crise de choro, o mesmo acontecendo com
Arruda e vários outros dirigentes.
O comitê central reuniu-se novamente na primeira quinzena de
outubro. De acordo com diferentes versões, Marighella havia passado várias
noites em claro, chorando, mas chegou à reunião mais controlado, embora
taciturno. A reunião já estava instalada quando chegaram exemplares da Imprensa
Popular, contendo um artigo de João Batista de Lima e Silva intitulado “Não se
pode adiar uma discussão que já se iniciou em todas as cabeças”, abrindo, na
prática, o debate. A primeira reação de vários dirigentes foi considerar a
publicação do artigo um ato de indisciplina, mas a tônica da participação de
Marighella, que concordava com tal idéia, foi a insistência, com o apoio de
Arruda, na luta pela legalização do PCB.
Um
mês depois houve nova reunião do comitê central para aprovar uma carta de Prestes
sobre a maneira de conduzir o debate. Declarando-se entusiasta da discussão,
ele afirmava entretanto serem “inadmissíveis, em nossas fileiras e na imprensa
feita com os recursos do povo, quaisquer ataques à União Soviética e ao PCUS”.
A carta foi contestada pelos “abridistas”. Marighella escreveu então um artigo
intitulado “A carta de Prestes e o internacionalismo proletário”, no qual
compartilhava a posição do secretário-geral e defendia a tese de que “era
inevitável que se cometessem os erros de que agora procuramos fazer
autocrítica”. Sua posição foi igualmente criticada pela corrente “abridista”, e
quatro meses depois, em abril de 1957, Marighella voltou a escrever,
respondendo a alguns membros dessa facção.
Designado para representar a comissão executiva do PCB junto
à Comissão Nacional de Finanças dirigida por Agildo Barata, Marighel- la entrou
em conflito com seus integrantes, sendo rotulado de “fechadista”, isto é,
contrário à abertura dos debates internos. Por outro lado, também não se
identificava plenamente com o “núcleo dirigente”, e nem gozava de sua
confiança. Assim, na reunião do comitê central realizada em agosto de 1957,
Marighella foi eleito para a nova comissão executiva — ao lado de Prestes,
Giocondo Dias, Mário Alves e outros — ao mesmo tempo em que o “núcleo
dirigente” era derrubado, tendo sido tachada de “antipartidária” a atividade de
Agildo Barata, que terminou por desligar-se do partido, em maio de 1957, junto
com a maioria dos intelectuais de sua facção, que predominavam nos órgãos
centrais da imprensa comunista, Voz Operária e Tribuna Popular. Em agosto
seguinte, foi expulso oficialmente das fileiras do PCB, enquanto os integrantes
do antigo “núcleo dirigente” acabaram liderando uma cisão que resultou na
criação, em 1962, do Partido Comunista do Brasil (PCdoB).
Marighella
passou a ser tesoureiro do comitê central do PCB. Em março de 1958, a direção
nacional divulgou uma declaração através da qual rompia, de modo categórico,
com a linha do Manifesto de agosto de 1950 e optava pelo caminho pacífico para
o socialismo, “tornado possível pelas modificações na arena internacional”. No
V Congresso do PCB, realizado em 1960, a nova linha foi ratificada, e
Marighella foi confirmado em suas funções.
Em 1962, o PCB realizou uma conferência nacional para
discutir os problemas de organização, aprovando dois documentos. Um deles
considerava que a organização do partido e da classe operária estava muito
aquém das exigências do quadro político nacional, e recomendava prudência. O
outro era uma resolução política que, paradoxalmente, continha posição oposta,
e orientava o partido a avançar. Marighella foi um dos grandes defensores dessa
posição.
A opção pela luta armada e o desligamento do PCB
O movimento político-militar que em 31 de março de 1964 derrubou
o presidente João Goulart foi, para Marighella, a confirmação de sua descrença
no caminho pacífico para o socialismo. Segundo ele, a ausência de uma
preparação para enfrentar pelas armas as forças conservadoras havia sido o
grande erro cometido até então. Já nos primeiros dias de abril de 1964, tentou
obter o apoio de outros membros do comitê central, entre os quais Hércules
Correia, para promover um levante na Vila Militar, no Rio.
No dia 9 de maio desse ano, quando assistia a uma sessão de
cinema, no Rio, recebeu voz de prisão de policiais do Departamento de Ordem
Política e Social (DOPS), e, contrariando a diretiva partidária de evitar
provocações, resistiu. No conflito estabelecido, foi alvejado na barriga, mas
continuou brigando com os policiais até ser dominado por oito homens. Libertado
no mês seguinte, explicitou suas divergências com a linha política do PCB —
compartilhadas também por muitos outros dirigentes nacionais e estaduais — no
livro Por que resisti à prisão, publicado em 1965, onde afirmou que sua
resistência havia sido “um modo de exprimir confiança na capacidade e
receptividade do povo, para a compreensão de um ato de protesto (mesmo
individual)”. Defendia ainda a idéia de que o regime militar brasileiro não
conseguiria evitar a diminuição do ritmo de desenvolvimento econômico, o que
levaria o país a uma situação de crise revolucionária, e, baseado nessas
premissas, afastava a hipótese de participação na “farsa eleitoral” e pregava a
necessidade da insurreição popular.
Somente 13 meses depois do movimento de março de 1964, o
comitê central do PCB se reuniu, ocasião em que as posições de Marighella foram
criticadas. Nessa reunião, a ala dirigida por Prestes, que propunha a
integração do partido numa frente contra o regime militar, revelou-se
majoritária, derrotando a ala que, liderada por Mário Alves, Manuel Jover Teles
e Jacob Gorender, propunha a preparação da luta armada. Os dois primeiros foram
então destituídos da comissão executiva, mas Marighella, que também defendeu
uma política cujo horizonte era a luta armada, permaneceu no organismo máximo
do partido juntamente com Prestes, Giocondo Dias e outros. Segundo Hércules
Correia, houve um protesto generalizado contra o projeto de resolução
apresentado no fim do encontro por uma comissão presidida por Prestes, pois,
nela vigoravam as opiniões de Marighella, que não correspondiam ao pensamento
majoritário no comitê central, sendo necessário dar nova redação ao texto.
Em 1966, Marighella escreveu o ensaio A crise brasileira,
onde reafirmava que o caminho pacífico estava superado pois “a ditadura em
nosso país só se extinguirá pela força”. A luta de guerrilhas era vista como
“uma das formas da luta de resistência das massas”, embora não fosse “uma forma
de luta apropriada às áreas urbanas”. Marighella continuava no órgão máximo de
direção do PCB, mas começara a desenvolver, de forma mais ou menos ostensiva,
um trabalho de arregimentação dos numerosos adeptos de sua posição, criando
assim uma situação insustentável. Em 19 de dezembro de 1966, escreveu uma carta
em que pedia demissão da comissão executiva e tornava pública sua disposição de
“lutar revolucionariamente, junto com as massas, e jamais ficar à espera das
regras do jogo burocrático e convencional que impera na liderança”. Criticava duramente
a atuação da comissão executiva que, segundo ele, retornava “à concepção
antimarxista e antidialética do ‘núcleo dirigente’ monolítico, superposto ao
coletivo”, além de “não exercer o comando efetivo e direto do partido nas
empresas fundamentais do país”, limitando-se a fazer reuniões, redigir notas
políticas e elaborar informes. “Não há assim ação planejada, a atividade não
gira em torno da luta.” Essa carta nunca foi respondida pela direção do PCB.
Em
junho de 1966 foi novamente convocado, para o ano seguinte, o VI Congresso do
partido, cuja realização, prevista para 1964, havia sido adiada devido à
turbulência política provocada pela implantação do regime militar em março
deste ano. Nessa ocasião, todas as divergências, existentes há muito tempo e
exasperadas pela “derrota” de 1964, começaram a se precipitar em um processo de
cisões. Marighella, que depois de renunciar ao cargo na comissão executiva fora
eleito por grande maioria secretário político do comitê estadual de São Paulo
em maio de 1967, liderou uma das três cisões importantes então ocorridas,
conseguindo fazer com que um numeroso contingente de comunistas deixasse o PCB.
Em
junho do ano seguinte, Marighella escreveu uma Crítica às teses do Comitê
Central, onde afirmava que elas não tomavam posição quanto ao caminho da
revolução: “Não se definem pela via armada, nem pela pacífica,... se limitam a
falar das formas de luta, o que é diferente de falar do caminho da revolução.
As formas de lutas podem ser pacíficas ou não, e isto constitui apenas uma
questão tática.” Dois meses depois, sem dar satisfação à direção do PCB, cuja
autoridade não reconhecia mais, Marighella foi a Cuba, participar da I
Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (OLAS), onde
pronunciou um discurso afirmando que “nenhuma vanguarda pode pretender-se tal
se não se preparou e não preparou o povo por meio da luta armada”.
Depois disso, Marighella foi expulso do partido, e o comitê
central interveio no comitê estadual de São Paulo. Em outubro, ainda em Havana,
escreveu o artigo Algumas questões sobre as guerrilhas no Brasil, publicado
pelo Jornal do Brasil em setembro do ano seguinte. Nesse texto, em que não faz
nenhuma análise da situação brasileira, defende a luta de guerrilhas como “o
caminho fundamental, e mesmo único, para expulsar o imperialismo e destruir as
oligarquias, levando as massas ao poder”. A profunda influência da experiência
cubana era latente.
Formação da ALN
Realizado o VI Congresso do PCB, em dezembro de 1967,
triunfou a linha que, adotada desde 1965, era defendida pelas teses lançadas um
ano e meio antes pelo comitê central e representava uma continuidade em relação
à política definida pela Declaração de março de 1958 e à linha aprovada no V
Congresso (1960).
Marighella e um suplente do comitê central que deixou o PCB
junto com ele, Joaquim Câmara Ferreira, formaram então o Agrupamento Comunista
de São Paulo, que se autodefinia, em seu Pronunciamento de fevereiro de 1968,
como pólo aglutinador de ex-membros do PCB que, “discordando da linha pacífica,
resistiram ao comitê central, tendo sido muitos deles expulsos ou vítimas de
outras arbitrariedades, sem poderem defender-se, por não terem sido chamados a
participar das reuniões em que foram punidos”.
Embora influenciado pelas posições do escritor francês Régis
Debray, que acompanhou a fatal incursão de Ernesto “Che” Guevara nas selvas
bolivianas, o agrupamento não defendia a implantação da guerrilha a partir de
um foco isolado, e propunha a combinação dessa forma “estratégica” de luta com
outras formas de guerrilha em várias regiões do território nacional. Não
pretendia também constituir-se como organização partidária nos moldes propostos
pelos clássicos do marxismo-leninismo: “Precisamos agora de uma organização clandestina,
bem estruturada, flexível, móvel. Uma organização de vanguarda para agir, para
praticar a ação revolucionária constante e diária, e não para permanecer em
discussões e reuniões intermináveis.” O lema fundamental desta embrionária
organização era: “O dever de todo o revolucionário é fazer a revolução.”
Marighella
retornou de Cuba disposto a transformar o agrupamento paulista em uma nova
organização de âmbito nacional e, com esse objetivo, viajou muito pelo Brasil
no início de 1968, entrando em contato com comunistas descontentes. Deste
trabalho, surgiu a Ação Libertadora Nacional (ALN), que deflagrou a guerrilha
urbana através de uma série de assaltos a bancos para conseguir fundos. Nessa
época, outra organização também adotou a luta armada: a Vanguarda Popular
Revolucionária (VPR), resultante da união de militares, antigos adeptos de
Leonel Brizola, com grupos estudantis e intelectuais provenientes da
organização trotskista Política Operária (Polop).
A movimentação estudantil e toda a efervescência política de
1968 nas grandes cidades foram vistas por Marighella como “excelentes operações
táticas”, capazes de articular “a ação dos guerrilheiros urbanos com o
movimento de massas”. Entretanto, os órgãos de repressão do governo logo
intensificaram sua ação, prendendo, entre janeiro e agosto de 1968, cerca de
duzentas pessoas acusadas de envolvimento na luta armada. Em dezembro,
amplamente denunciado como chefe da subversão violenta, Marighella assinou um
documento intitulado Chamamento ao povo brasileiro, onde afirmava: “Diante da
escandalosa avalanche de mentiras e acusações terrivelmente injuriosas lançadas
contra mim, não tenho outra atitude a tomar senão a de responder à bala ao
governo e às suas asquerosas forças policiais, empenhadas na minha captura,
vivo ou morto... Agora não será como em 1964, quando eu estava desarmado e a
polícia disparou sem que eu pudesse pagar com a mesma moeda.”
As
ações de guerrilha urbana começaram em 1969, pouco depois da promulgação do Ato
Institucional nº 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968, que marcou um
endurecimento sem precedentes do regime militar. Marighella participou
pessoalmente de várias investidas e, em junho desse ano, escreveu o Minimanual
do guerrilheiro urbano, concebido claramente sob inspiração do exemplo cubano,
tendo em vista uma guerra de libertação nacional, quando a partir do apoio das
massas, “os guerrilheiros... derrubarão a ditadura e sacudirão o jugo
norte-americano”. A revolução era vista como “um fenômeno social que depende de
armas e dinheiro. Eles existem no país; basta ter os homens que tomem posse
deles”.
O Minimanual, curiosamente, gerou rebuliço no mercado
editorial francês. Incluído num livro organizado por Conrad Detrez (Carlos
Marighella, pour la libération du Brésil), sofreu ameaça de censura por parte
das autoridades desse país, o que levou as grandes editoras locais, sem
exceção, a se associarem à Editora Seuil na sua publicação, em 1969.
Em
agosto, Marighella chefiou um grupo de 12 homens que invadiu a estação da Rádio
Nacional, em Piraporinha (SP), e levou ao ar um manifesto contra o governo,
anunciando uma grande ação para breve. Tratava-se do seqüestro do embaixador
norte-americano, Charles Burke Elbrick, realizado no Rio de Janeiro em conjunto
com o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) no dia 4 de setembro, em
meio à crise política provocada pela substituição do presidente Artur da Costa
e Silva, gravemente enfermo, por uma junta militar formada pelos ministros das
três forças armadas. O embaixador foi libertado em troca da publicação de um
manifesto pela imprensa e do envio para o exterior de 15 presos políticos
pertencentes a diferentes organizações.
A partir deste episódio, a imprensa, sob forte censura,
desencandeou uma verdadeira ofensiva propagandística contra a subversão,
enquanto o cerco policial se fechava em torno das organizações armadas.
Marighella era um dos principais alvos. Sua liquidação chegou a ser anunciada
com antecedência pela revista Veja de 22 de outubro de 1969: “Marighella está
em São Paulo, na capital, dentro de um círculo de investigações que se fecha
gradativamente. Espera-se mesmo que ele tente uma fuga heróica e não se
acredita que ele venha a ser preso com vida.”
Nessa época, Marighella procurava estruturar o “setor
estratégico” da ALN, voltado para a deflagração e apoio à guerrilha rural, para
onde a organização estava deslocando quadros e recursos. Entretanto, o cerco
policial se fechou sobre ele antes que esse trabalho fosse efetivamente
implantado.
Carlos
Marighella foi morto por uma equipe policial comandada pelo delegado Sérgio
Paranhos Fleury. Seu corpo foi encontrado na noite de 4 de novembro de 1969, na
Alameda Casa Branca, em São Paulo. Além de Marighella, duas outras pessoas —
uma investigadora de polícia, e um protético que passava pelo local — morreram.
Segundo a versão oficial, o cerco tornou-se possível a partir da prisão, no
início do mês de novembro, de 23 militantes e simpatizantes da ALN, inclusive
dois frades dominicanos que conduziram a polícia até o local onde encontrariam o
líder da organização. Desencadeou-se então intensa campanha pela imprensa
contra essa ordem religiosa, visando em particular a Carlos Alberto Libânio
Cristo, conhecido como frei Beto — que 13 anos depois, em 1982, escreveria a
sua versão para o episódio, em Batismo de sangue. Entretanto, a infiltração de
policiais na ALN parece ter sido a causa principal da prisão, morte ou exílio
da maior parte dos integrantes da organização.
Marighella
foi enterrado no cemitério de Vila Formosa, em São Paulo, como indigente. Seu
lugar à frente da ALN foi ocupado por Joaquim Câmara Ferreira, morto nas mãos
da polícia um ano depois, quando a repressão política chegou ao seu auge. Em 10
de dezembro de 1979, depois da decretação da anistia política, os restos
mortais de Marighella foram transferidos para um túmulo desenhado por Oscar
Niemeyer, no cemitério da Quinta dos Lázaros, em Salvador. Na cerimônia, além
da oração fúnebre, escrita pelo abade do mosteiro de São Bento da capital
baiana, dom Timóteo Anastácio, o escritor Jorge Amado se encarregou de produzir
uma mensagem especial.
Em janeiro de 1995, em virtude da abertura ao público dos
arquivos do extinto Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS),
de São Paulo, que guardava parte da documentação referente à morte de
Marighella, a imprensa reacendeu a polêmica em torno do caso, divulgando
documentos que isentavam os dominicanos de qualquer envolvimento na delação do
local onde estaria o líder guerrilheiro, naquele dia 4 de novembro de 1969,
atribuindo a culpa a militantes de esquerda que dias antes tinham sido presos e
torturados pelas forças policiais. Esta versão foi veementemente contestada
pela ex-companheira de Marighella, Zilda Xavier, para quem os dominicanos eram,
na verdade, os responsáveis pelo acontecido.
Quase três décadas após a sua morte, ressurgiu a discussão
sobre casos de presos políticos mortos ou desaparecidos durante o regime
militar, diante de pressões internacionais vindas de organizações
não-governamentais (ONGs) de direitos humanos, de apelos e interpelações legais
de grupos e comissões de familiares de desaparecidos políticos, e também em
virtude da liberação de documentos oficiais até então de acesso restrito às
forças armadas sobre a luta contra a guerrilha nas décadas de 1960 e 1970. Em
1995, foi então promulgada a Lei nº 9.140, que reconhecia os mortos em
dependências do Estado e previa indenizações para suas famílias. No ano
seguinte, por determinação dessa lei, foi constituída pelo Ministério da
Justiça a Comissão Especial dos Desaparecidos Políticos — formada por sete
integrantes, entre os quais um representante dos parentes das vítimas, um das
forças armadas, um da Câmara Federal e um do Ministério Público —, encarregada
de julgar a procedência de reparos, na forma de indenizações, às famílias das
vítimas.
Dessa forma, em abril de 1996, parentes de Marighella e
também de Carlos Lamarca — outro importante líder guerrilheiro na luta contra o
regime, ex-capitão do Exército e líder da Vanguarda Popular Revolucionária
(VPR) — protocolaram seus respectivos pedidos de indenização junto à referida
comissão. Por mais de quatro meses foram realizadas a feitura de laudos, a
interpretação de indícios e o colhimento de provas necessárias ao julgamento
dos processos.
Neste período, houve sempre opiniões conflitantes entre
parentes das vítimas, governo, militares e integrantes da comissão. Discutia-se
basicamente a aplicação ou não aos dois casos da Lei nº 9.140/95, de autoria de
José Gregori — advogado e chefe do gabinete do Ministério da Justiça —, que
previa o pagamento de indenizações às famílias de vítimas que tivessem
desaparecido ou sido mortas enquanto estavam sob a tutela do Estado. Assim como
no caso de Lamarca, a versão oficial a respeito da morte de Marighella afirmava
que o líder guerrilheiro havia sido alvejado numa troca de tiros com a polícia
e que, portanto, se encontrava em situação de combate, o que eximia o Estado de
qualquer responsabilidade por sua guarda.
No entanto, em maio foi apresentado um dossiê à comissão
especial do Ministério da Justiça, no qual se contestava a versão oficial,
através do estudo das fotos que documentaram o episódio e de novas análises do
seu laudo cadavérico, feitas pelo legista Nélson Massini, o mesmo que analisou
o processo de Lamarca. Massini derrubou as teses do laudo original, de autoria
do médico-legista Harry Shibata, concluindo que Marighella fora executado,
sendo que um dos tiros o atingira no peito, à queima-roupa. A partir das novas
análises, deduziu-se que toda a cena fotografada de sua morte havia sido
montada. Com base em tal documentação, o nome de Marighella, assim como o de
Lamarca, foi incluído na lista de mortos e desaparecidos políticos da comissão
especial encarregada de julgar os processos, para irritação do representante
das forças armadas na comissão, general Osvaldo Pereira Gomes, que ameaçou
exigir também “o reconhecimento de mais de cem pessoas mortas por militantes de
esquerda”.
Marcado
inicialmente para o dia 1º de agosto de 1996, o julgamento dos processos de
Marighella e Lamarca foi adiado para o mês seguinte em virtude de uma
negociação entre o presidente da República, Fernando Henrique Cardoso
(1995-1998), e o presidente da comissão especial, Miguel Reale Jr., em face das
pressões que o presidente vinha sofrendo dos setores militares, descontentes
com a possível concessão de uma indenização às respectivas famílias.
Em setembro, portanto, por cinco votos a dois, a Comissão
Especial dos Desaparecidos Políticos deu ganho de causa aos parentes das
vítimas, que receberam no ano seguinte, cada uma, a importância de cem mil
reais. Após este episódio, por certo o mais polêmico e conturbado, a Comissão
Especial dos Desaparecidos Políticos continuou atuando. Até agosto de 1997,
haviam sido pagas 193 indenizações a famílias de desaparecidos.
Em outubro de 1999, marcando o 30º aniversário da morte de
Marighella, foi lançado o livro Carlos Marighella — o homem por trás do mito,
organizado por Cristiane Nova e Jorge Nóvoa. Ainda em virtude da data, foi
inaugurada a exposição “Encontra-se Carlos Marighella, 30 anos depois”, no
Memorial da América Latina, em São Paulo.
No mês seguinte, a 4 de novembro de 1999, dia exato dos 30
anos da morte de Marighel- la, além do lançamento de uma fotobiografia
intitulada Carlos Marighella: um homem de seu tempo, de Gilberto Maringoni,
Márcia Camargos e Vladimir Sacchetta, parentes, amigos, militantes de esquerda
e estudantes, num ato público, caminharam, em memória de Marighella, até a
altura do número 800 da alameda Casa Branca, local onde o líder guerrilheiro foi
fuzilado em 1969.
Carlos Marighella era casado com Clara Scharf, com quem não
teve filhos. No entanto, em 1948, nasceu o seu único filho, Carlos Augusto
Marighella, ainda do primeiro casamento. Já na clandestinidade, viveu
maritalmente até sua morte com Zilda Xavier Pereira, também fundadora da ALN.
Escreveu Por que resisti à prisão (1965), Uma prova em versos
e outros versos (poesia, 1966), Os lírios já não crescem em nossos campos
(poesia, 1966) e Escritos de Carlos Marighella (1979). Publicou também
numerosos artigos na imprensa de esquerda entre 1945 e 1969. Seus textos do
período da luta armada foram publicados em francês, inglês, espanhol e
italiano.
Mauro Malin
FONTES: ARQ. DEP.
PESQ. JORNAL DO BRASIL; ARAÚJO, M. Cronologia 1943; Bancada; CAFÉ FILHO, J.
Sindicato; CÂM. DEP. Deputados; CÂM. DEP. Relação dos dep.; CARONE, E. Estado;
CARONE, E. República nova; CHILCOTE, R. Brazilian; COHN, G. Petróleo; Coojornal
(2/80); Correio Brasiliense (5/11/69); Cruzeiro (20/11/69); DULLES, J.
Anarquistas; Em Tempo (2, 3, 4, 5, 6, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26,
27, 28 e 29/8, 3, 14, 15, 16, 17, 18 e 19/9, 18, 19, 20, 21, 22, 23 e
24/10/79); Encontros com a Civilização Brasileira (7/79); Estado de Minas
(6/11/69); Estado de S. Paulo (5, 6 e 7/2, 8, 10, 12 e 13/4/80); Folha de S.
Paulo (12/5/96); FURTADO, J. Vertentes (1/80); GALVÃO, F. Fechamento; Globo
(5/11/69 e 16/10/79); Grande encic. Delta; IstoÉ (4, 7 e 31/10/ 79); Jornal do
Brasil (16 e 24/5/69, 6 e 9/11, 10 e 11/12/79, 11, 12/1/95, 15/5/96); LEITE, A.
Páginas; LINHARES, H. Contribuição; MAGALHÃES, I. Segundo; MARIGHELLA, C.
Escritos; Movimento, SP (7 e 26/8 e 30/9/79); PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO.
PCB; PERALVA, O. Retrato; PRESTES, L. Prestes; PT. Linha Aberta. Internet
(28/9, 2/10 e 4/11/99); SILVA, G. Constituinte; SILVA, H. 1945; Temps Moderns
(11/69); Tricontinental (1/70); Veja (13/8 e 20/11/68, 6/5, 17/9, 22/10, 5, 12
19/11/69 e 6/9/78).