TORTURA
NUNCA MAIS
O Grupo Tortura Nunca Mais surgiu extra-oficialmente em abril
de 1985 e oficialmente em 20 de setembro do mesmo ano. Além do grupo do Rio de
Janeiro, existem grupos Tortura Nunca Mais em Minas Gerais, Pernambuco, São Paulo, Bahia, Paraná, Alagoas e Goiás. Gozam de total
autonomia, já que não existe coordenação nacional.
Antecedentes
A
formação do Grupo Tortura Nunca Mais está diretamente associada ao processo de
abertura política e redemocratização da sociedade brasileira depois de 21 anos
de regime militar (1964-1985) e também à inconformidade de um grupo de
ex-presos políticos, voluntários e familiares de mortos e desaparecidos
políticos com o tratamento que o Estado brasileiro dispensava à questão da
tortura, morte e desaparecimento de opositores políticos. As limitações da Lei
de Anistia de 1979 — que além de excluir vários segmentos sociais cassados por
fazer oposição ao regime militar, anistiara pessoas que haviam participado do
aparato de repressão antes mesmo de serem apresentadas à Justiça — evidenciaram
o não atendimento das reivindicações dos Comitês Brasileiros pela Anistia
(CBAs), que desde 1976 funcionavam em algumas das principais capitais do país.
Em
abril de 1985 o grupo do Rio de Janeiro, ainda sem nome, passou a se reunir
semanalmente no Sindicato dos Jornalistas e tinha como um dos objetivos
denunciar e afastar dos cargos de confiança do governo estadual pessoas ligadas
à tortura durante o regime militar. Sua primeira ação ocorreu durante o
primeiro mandato de Leonel Brizola no governo do estado do Rio de Janeiro
(1983-1987), quando da indicação pelo secretário de Defesa Civil, José Halfeld
Filho, para o comando do Corpo de Bombeiros-Defesa Civil do major Válter
Jacarandá, reconhecido pelo secretário de Transportes e ex-preso político
Brandão Monteiro como sendo um de seus torturadores. Ex-presos políticos também
reconheceram o próprio secretário de Defesa Civil como carcereiro do presídio
São Judas Tadeu e homem de ligação entre o Departamento de Ordem Política e
Social (DOPS) e os centros de Informação do Exército (CIEx), da Marinha
(Cenimar) e da Aeronáutica (Cisa), e o assessor de segurança para o Banco do
Estado do Rio de Janeiro (Banerj), o major da Polícia Militar (PM) Riscala
Corbaje, conhecido como “dr. Najib”. Com a publicação de duas reportagens no Jornal
do Brasil, uma sobre as atividades do grupo e outra com as declarações de
Brandão Monteiro contra o secretário de Defesa Civil, a tortura, até então
tratada privadamente, tornou-se tema público. Como resultado da atuação do
grupo, Jacarandá não chegou a ser nomeado comandante do Corpo de Bombeiros e
Riscala Corbaje foi afastado do cargo de assessor de segurança do Banerj. José
Halfeld Filho foi mantido na Secretaria de Defesa Civil.
Com
isso, o grupo passou a considerar importante a criação de uma entidade que
abordasse a ligação entre a violência urbana e rural e o aparato de repressão
criado pelo regime militar, que tinha feito da tortura um instrumento oficial e
institucionalizado a figura do desaparecido político. Influenciados também
pelos trabalhos da Comissão Sábato, na Argentina, que publicara o livro Nunca
mais sobre a ditadura militar argentina (1976-1983), foi criado o Grupo Tortura
Nunca Mais-RJ.
Atuação
Após
o lançamento oficial em setembro de 1985, aconteceu em outubro/novembro o
I Seminário do Grupo Tortura Nunca Mais-RJ na Faculdade Cândido Mendes,
com a participação de ex-presos políticos, intelectuais e artistas e o apoio da
Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB),
Federação das Associações de Moradores do Estado do Rio de Janeiro (FAMERJ),
União Estadual dos Estudantes (UEE) e os sindicatos de Jornalistas, Professores
e Bancários do Rio de Janeiro.
Com
alguma cobertura da imprensa, as denúncias contra colaboradores de Leonel
Brizola levaram o governador a considerar as atividades do grupo tentativas de
desestabilização do seu governo. Com o fato de a discussão sobre a tortura ter
se tornado pública, outros grupos Tortura Nunca Mais se formaram em capitais
como Belo Horizonte, Recife e São Paulo. Em 1986, o Grupo Tortura Nunca Mais-RJ
começou a publicar um boletim de uma página que gradativamente foi crescendo.
Em
março de 1988, o médico Amílcar Lobo, conhecido como “dr. Carneiro”
(participante de sessões de tortura durante o regime militar e contra quem já
fora aberto um processo em 1986 no Conselho Regional de Medicina do Estado do
Rio de Janeiro), teve seu registro profissional cassado pela entidade, com o
apoio do Tortura Nunca Mais. Em agosto de 1989 essa decisão foi ratificada pelo
Conselho Federal de Medicina. Assim, Lobo se tornou o primeiro médico da
América Latina punido por ter participado de atos de tortura. Depois de
apresentar sem sucesso vários recursos, em 1996 o Tribunal Regional Federal lhe
deu ganho de causa, reabilitando seu registro médico.
Ainda
em 1989 o grupo começou a organizar um pool de entidades nacionais e
internacionais (Mães da Praça de Maio, Avós da Praça de Maio, Anistia
Internacional etc.), com o objetivo de enviar denúncias sobre violações aos
direitos humanos no Brasil. Essa ação tornou o grupo conhecido
internacionalmente, proporcionando inclusive a obtenção de um financiamento da
Organização das Nações Unidas (ONU) que se efetivaria em 1992. Com essa verba,
o Grupo Tortura Nunca Mais-RJ criou uma equipe de apoio médico-psicológico
voltada para o atendimento de ex-presos políticos e familiares de mortos e
desaparecidos, responsável pelo desenvolvimento do Projeto Clínico-Grupal
Tortura Nunca Mais, pioneiro no Brasil.
Em
1989 o Comando Regional do Leste (ex-I Exército) homenageou com a Medalha do
Pacificador, no dia do 25º aniversário do movimento político-militar de 31 de
março de 1964, diversos oficiais, entre eles muitos torturadores. O Tortura
Nunca Mais-RJ criou então uma medalha, entregue anualmente em 1º de abril, em
homenagem não só aos mortos e desaparecidos políticos mas às pessoas ou
instituições que se destacaram em lutas políticas. Em homenagem ao líder
seringueiro Chico Mendes, morto em 1988, ela passou a se chamar Medalha Chico
Mendes de Resistência.
Em 1990, foi encontrada uma vala no cemitério Dom Bosco, em São Paulo, contendo 1.049 ossadas de indigentes, presos políticos e vítimas dos esquadrões da
morte. Essa vala já era conhecida pelo grupo e pelos CBAs, porém nunca se
obtivera o apoio político no sentido de abri-la. Nesse contexto, o Grupo
Tortura Nunca Mais-RJ conseguiu, através do secretário de Justiça e de Polícia
Civil do Rio de Janeiro, Nilo Batista, a autorização para a entrada no
Instituto Médico Legal (IML). Apesar de muita pressão, o grupo conseguiu
encontrar dados sobre 14 mortos enterrados como indigentes numa vala do
cemitério de Ricardo de Albuquerque, que posteriormente foi aberta, e dois
militantes enterrados nos cemitérios da Cacuia, na ilha do Governador, e de
Santa Cruz. Em pesquisas realizadas também no Instituto de Criminalística
Carlos Éboli, foram encontradas fotos que atestavam a tortura em presos
políticos supostamente mortos em confrontos com a polícia.
Em
1991 o Grupo Tortura Nunca Mais-RJ iniciou pesquisas no IML, nas polícias
técnicas e em cemitérios da periferia. Foram exumadas 2.100 ossadas, com a
ajuda de dois médicos legistas. Esse trabalho, assim como a catalogação dos
ossos do crânio e arcadas dentárias, foi executado sob a supervisão da Equipe
Argentina de Antropologia Forense e suspenso em 1993 por falta de dinheiro, de
recursos e pessoal. As ossadas seriam catalogadas e guardadas no Hospital Geral
de Bonsucesso. Ainda em 1991 o grupo divulgou um dossiê com os nomes de 66
médicos-legistas de São Paulo e 44 do Rio de Janeiro que nos anos do regime
militar haviam assinado laudos de necropsia de ex-presos políticos assassinados
sob torturas e cujas versões oficiais à época referiam-se a mortes por
tiroteio, atropelamento ou suicídio. Entrou-se então com pedidos de abertura de
investigações no Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj) e no
Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) contra esses
médicos legistas.
Em 1992 o Cremerj, que quatro anos antes abrira processo
contra os médicos psicanalistas Leão Cabernite e Ernesto La Porta, cassou-lhes
os registros profissionais. Os dois tinham sido denunciados como tendo
acobertado as atividades de Amílcar Lobo durante a repressão política. No
entanto, em 1994, essas cassações seriam revistas pelo Conselho Federal de
Medicina.
Em agosto de 1992 os arquivos do DOPS foram entregues pela
Polícia Federal ao governo do Rio de Janeiro e, imediatamente, foi permitida a
pesquisa ao Grupo Tortura Nunca Mais-RJ. No ano seguinte o grupo conseguiu uma
sede em Botafogo (Zona Sul do Rio), cedida pelo governo estadual por dez anos,
durante a gestão de Nilo Batista (1994). Ainda em 1993 foi denunciado ao
Cremerj o médico José Lino Coutinho de França Neto, conhecido como dr.
Coutinho, que atuou na ilha das Flores em 1969 atendendo a presos políticos
torturados.
Em 1994, durante a “Operação Rio”, convênio firmado entre o
governo fluminense e o governo federal para o combate à violência, o grupo
lançou um manifesto condenando a ação sob alegação de que “as forças armadas
não tinham o direito de ficar ligadas à segurança pública, pois aquilo era uma
justificativa para a violação dos direitos humanos”. O grupo acompanhou a
ocupação de morros, constatou torturas em moradores e fez denúncias, inclusive
à Procuradoria Geral da República, sobre as violações aos direitos humanos. O
grupo recebeu então um financiamento da Comunidade Européia para o projeto da
equipe clínico-grupal. Em fevereiro de 1995, o Tortura Nunca Mais-RJ e outras
entidades de defesa dos direitos humanos lançaram um dossiê que aumentava a
lista de mortos e desaparecidos políticos entre 1964 e 1984 para,
respectivamente, 156 e 152. Os novos casos foram descobertos pelos grupos
Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e de Pernambuco e pela Comissão de
Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos em pesquisas nos arquivos do
DOPS de São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Paraná e Bahia.
Em
maio, com a posse do novo secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro do
governo Marcelo Alencar, general Nílton Cerqueira, o Grupo Tortura Nunca
Mais-RJ apresentou um dossiê mostrando que o general fora responsável por toda
a área de informações da 6ª Região Militar da Bahia e pelo cerco e morte
do líder do grupo clandestino de esquerda Movimento Revolucionário 8 de Outubro
(MR-8) Carlos Lamarca. Na ocasião, o secretário declarou que o Grupo Tortura
Nunca Mais-RJ fazia parte de “centrais de ódios”. O grupo também apontou como
torturador o coronel de infantaria Armando Avólio Filho, então adido militar
junto à Embaixada do Brasil em Londres, que viria a ser exonerado. Em junho, o
grupo denunciou como torturadores o diretor-geral do Departamento Estadual de
Trânsito (Detran) de São Paulo, Enos Beolchi, mais quatro delegados e duas
pessoas que ocupavam cargos de chefia no órgão, todos indicados pelo governador
paulista Mário Covas.
Em
julho de 1995, o grupo criticou o projeto do governo Fernando Henrique Cardoso
sobre a indenização para os familiares de mortos e desaparecidos políticos,
apontando sua timidez por não apurar as circunstâncias das mortes e deixar
muitas pessoas de fora. Era o caso dos mortos na rua, desaparecidos no Brasil
posteriormente ao período coberto pela Lei da Anistia, de 1961 a 1979, e desaparecidos fora do Brasil, perseguidos pelos serviços de repressão dos países
latino-americanos que viviam também em ditaduras militares, como Argentina,
Uruguai, Paraguai, Bolívia e Chile. O grupo e outras entidades propuseram
igualmente que o governo se comprometesse a não indicar para cargos de
confiança pessoas envolvidas com os crimes do regime militar e questionou a
lista de 136 nomes apresentada pelas autoridades, reivindicando o aumento para
217 nomes.
Em agosto o Grupo Tortura Nunca Mais–RJ descobriu, no Arquivo
Público do Rio de Janeiro, dados sobre mais duas pessoas desaparecidas: o
escultor Vítor Carlos Ramos, desaparecido desde 1974 quando tinha 26 anos de
idade e o gráfico Alberto Aleixo, irmão do vice-presidente do governo Costa e
Silva (1967-1969), Pedro Aleixo, então com 72 anos, torturado e morto em 1975.
Ainda em agosto outro médico denunciado pelo Cremerj como participante de
sessões de tortura no Departamento de Operações Internas-Centro de Operações
para a Defesa Interna (DOI-CODI) entre 1969 e 1974, o general-de-brigada
Ricardo Agnese Fayad, teve seu registro profissional cassado pelo Conselho
Federal de Medicina. No entanto, por ser militar, continuou exercendo suas
atividades médicas no Exército, que não aceitou a cassação.
Em setembro de 1995 o projeto de lei sobre desaparecidos
políticos do governo federal (Lei nº 9.140) foi aprovado na Câmara dos
Deputados, em votação simbólica, por 476 votos, sendo rejeitadas todas as
emendas que tentavam ampliar o projeto, como a possibilidade de investigação
das circunstâncias das mortes. A lei foi sancionada em 4 de dezembro de 1995,
reconhecendo como mortas 136 pessoas desaparecidas em razão de participação, ou
acusação de participação, em atividades políticas de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979.
Em
janeiro de 1996 foi formada a Comissão Especial dos Mortos e Desaparecidos
Políticos do Ministério da Justiça, que passou a julgar os casos de indenização
aos parentes de desaparecidos políticos. O Grupo Tortura Nunca Mais-RJ
participou através da representante dos grupos de direitos humanos e de
familiares, Susana Lisboa, mobilizando-se especialmente nos julgamentos dos
casos de Carlos Marighella e Carlos Lamarca, marcados pela grande oposição das
forças armadas e que só seriam aprovados em setembro de 1996. As pesquisas
documentais realizadas pela comissão em arquivos dos órgãos de repressão
franqueados ao público possibilitaram a comprovação da falsidade das versões
criadas pelo regime militar para os desaparecimentos e mortes de militantes
políticos.
O grupo pressionou e conseguiu que a Justiça obrigasse os
cartórios a cumprir a Lei Federal nº 9.140, que autorizava a emissão de
atestados de óbito com os nomes de desaparecidos políticos, mesmo com a
ausência de algumas informações sobre a morte.
Em março de 1997 o grupo Tortura Nunca Mais-RJ iniciou uma
campanha, juntamente com outras entidades de defesa dos direitos humanos
brasileiras e americanas, pelo fechamento da Escola das Américas, um centro de
treinamento de militares latino-americanos nos Estados Unidos que ensinava
técnicas de tortura e de combate contra grupos guerrilheiros. Segundo o grupo,
dos 450 militares brasileiros que estiveram na escola, 19 participaram da
repressão durante o regime militar, entre eles Taumaturgo Sotero Vaz, que lutou
contra a guerrilha do Araguaia no início da década de 1970, João Paulo Penido
Burnier, acusado de participação na morte de vários presos políticos, e o então
presidente do Clube Militar, Hélio Lima Ibiapina.
Em
março de 1998 a entidade reivindicou ao presidente Fernando Henrique Cardoso
que anulasse a nomeação do médico e general-de-brigada Ricardo Agnese Fayad,
cassado pelo Cremerj em 1995, para o cargo de subdiretor de Saúde do Exército.
Em virtude das pressões, no mês seguinte Fayad pediu demissão do posto.
Em
maio de 1998 o grupo iniciou uma campanha pela abertura dos arquivos das forças
armadas, da Polícia Federal e do extinto Serviço Nacional de Informações, a fim
de localizar as ossadas de militantes, e pela aprovação de leis ampliando de
1979 para 1985 o período de responsabilização do Estado por mortes provocadas
pela violência policial, com indenização a presos perseguidos pelo regime
militar.
Integrante de uma rede de 150 entidades de direitos humanos
brasileiras e estrangeiras, o Grupo Tortura Nunca Mais–RJ filiou-se, em 1989, à
Federação Latino-Americana de Familiares de Desaparecidos, com sede em Caracas
e ao SOS Torture, com sede em Genebra, na Suíça.
Marcelo
Costa
FONTES: BASÍLIO, L.
Grupo; COMIS. FAM. MORTOS DESAP. POL. Dossiê; ENTREV. Cecília
Coimbra; Estado de S. Paulo (27/7/95, 3/4 e 6/5/98); Folha de S.
Paulo (29/11/94, 17/5, 11/8, 14 e 23/9/95, 5/1 e 9/7/96, 11/3, 10/4 e
6/5/98); Globo (15/5, 9/6, 30/7, 2, 9 e 11/8 e 12/12/95, 10/3 e 12/9/96,
15/5/97, 10/4/98); INF. Flora Abreu; Jornal do Brasil (6/11/90,
21/11/92, 5/2, 14/5, 3 e 30/7, 1 e 6/8 e 14 e 24/9/95, 10 e 31/1, 28/4, 8 e
28/7 e 9/12/96, 11/3/97, 11/3 e 1/4/98).